
Na primeira análise de nossa série “Supremo Explicado”, debruçamo-nos sobre o contraponto técnico e a visão garantista do voto divergente proferido pelo Ministro Luiz Fux. Exploramos uma linha de raciocínio que, apegada à estrita legalidade e à distinção entre atos preparatórios e executórios, concluiu pela absolvição da maioria dos réus.
Agora, voltamos nossos olhos para a outra face deste julgamento histórico: o voto do relator, Ministro Alexandre de Moraes. Trata-se da peça que não apenas guiou a maioria de quatro ministros, mas que construiu, passo a passo, a arquitetura jurídica que fundamentou a condenação dos oito integrantes do chamado “Núcleo Crucial” na Ação Penal 2668.
Enquanto o voto divergente se concentrou em isolar as condutas para aferir a tipicidade individual, a análise do relator propõe uma visão sistêmica e cronológica dos eventos. O voto se notabiliza por conectar uma série de atos, que se estendem de 2021 a 2023, como elos de uma mesma corrente delitiva, compondo o que a acusação definiu como uma organização criminosa com um plano de poder bem traçado.
No texto a seguir, detalharemos os pontos centrais deste voto condutor, desde o sistemático afastamento de todas as preliminares de defesa até a minuciosa descrição dos 13 atos executórios que, segundo o relator, comprovam a materialidade e a autoria dos crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa armada.
Ao apresentar as duas teses em profundidade — a absolutória, analisada anteriormente, e a condenatória, que veremos agora — nossa série cumpre o objetivo de fornecer as ferramentas para a formação de um juízo crítico e bem-informado sobre um dos momentos mais decisivos da República.
Voto do Ministro Alexandre de Moraes no Julgamento da Ação Penal na Ação Penal 2668
O voto do Ministro Alexandre de Moraes, no julgamento da ação penal que investiga a “trama golpista”, constitui uma análise aprofundada das provas e dos fundamentos jurídicos pertinentes, dividindo-se em preliminares e mérito. O objetivo central foi determinar a autoria das infrações penais imputadas aos réus, uma vez que a materialidade dos delitos já havia sido reconhecida em mais de 474 ações penais.
1. Elementos Principais da Decisão
O voto do Ministro Relator Alexandre de Moraes seguiu uma estrutura clara, iniciando pela análise das questões processuais preliminares e, em seguida, adentrando no mérito da acusação.
1.1. Afastamento das Preliminares
O Ministro Alexandre de Moraes afastou todas as alegações preliminares apresentadas pelas defesas, garantindo a regularidade e validade do processo.
Em relação à nulidade da colaboração premiada de Mauro Cid, o Ministro reiterou que a sua regularidade e voluntariedade foram amplamente debatidas na sessão de recebimento da denúncia. A própria defesa do réu colaborador reafirmou a total voluntariedade e regularidade da colaboração premiada, afastando qualquer indício de coação, visto que todos os depoimentos, sejam policiais ou judiciais, foram gravados em áudio e vídeo. O Ministro afastou as novas alegações sobre violações às cláusulas do acordo e a suposta falta de concordância da Procuradoria-Geral da República com a delação premiada. Ele lembrou que o plenário do Supremo Tribunal Federal, na ADI 5508 em 20 de junho de 2018, pacificou a questão, definindo que a colaboração premiada não é privativa do Ministério Público, e a polícia também tem o direito de realizar acordos, desde que o Ministério Público seja ouvido e o STF homologue. No caso em questão, a Procuradoria-Geral da República, após inicialmente ser contrária, instaurar e arquivar um procedimento administrativo, alterou seu posicionamento e concordou com a colaboração, utilizando-a na denúncia, instrução processual e alegações finais.
Sobre a alegação de litigância de má-fé acerca dos depoimentos, o Ministro refutou a ideia de que os oito primeiros depoimentos de Mauro Cid, dados sucessivamente em 28 de agosto de 2023, seriam “oito delações contraditórias”. Ele classificou essa alegação como “litigância de má-fé” ou “total desconhecimento dos autos”, explicando que, por uma estratégia de investigação, a Polícia Federal optou por fracionar um grande depoimento em oito, pois tratavam-se de oito fatos diversos, como joias, falsificação de vacina e tentativa de golpe. Os depoimentos foram sequenciais e todos no mesmo dia, não sendo contraditórios. As eventuais omissões dolosas, como uma sanada na audiência judicial de 21 de novembro de 2024, não acarretam a nulidade da delação, mas podem modular os benefícios pactuados, conforme salientado pelo Procurador-Geral da República.
Quanto ao vazamento de áudios e uso de perfil no Instagram, o Ministro considerou que esses fatos, ainda sob investigação no Inquérito 5005, não afetaram as informações fornecidas pelo réu colaborador nem causaram prejuízo às defesas, que tiveram total possibilidade de impugnar ponto por ponto o que foi dito nas delações.
No que tange ao cerceamento de defesa, a defesa de Anderson Gustavo Torres alegou a não produção de prova sobre a identificação do responsável pela inserção de uma suposta minuta de golpe na internet. O Ministro recordou que o pedido foi deferido e a Google oficiada, mas a empresa informou não ter condições técnicas de identificar o responsável. A própria defesa de Anderson Torres, em sustentação oral, destacou que não insistiu mais na pertinência da diligência por falta de relevância probatória. Outra alegação de cerceamento de defesa foi o indeferimento de diligências junto à empresa Meta. O Ministro esclareceu que, ao contrário do alegado, a diligência foi deferida, cumprida integralmente pela Polícia Federal, e todos os réus tiveram conhecimento de seu andamento. A defesa de Braga Neto alegou nulidade pelo indeferimento de participação nos interrogatórios dos demais núcleos. O Ministro afirmou que todos os pedidos para participar como ouvinte nos interrogatórios ou nas audiências de testemunhas foram deferidos, e não houve nenhum prejuízo. Ele reiterou que nenhuma das defesas esgotou o número de testemunhas possíveis, e que as instruções processuais dos demais núcleos foram encerradas antes do início das alegações finais nesta ação penal, permitindo que as defesas solicitassem a oitiva de testemunhas de outros processos, caso houvesse necessidade. A alegação de que não houve tempo para analisar os “megabytes” de provas também foi afastada, pois todas as provas utilizadas pela Procuradoria Geral para o oferecimento da denúncia e pelo juízo para o recebimento estiveram no processo desde o início e as defesas tiveram total acesso. As novas provas solicitadas pelas defesas, que não foram usadas pela acusação ou pelo juízo, foram fornecidas, e mesmo após quatro meses (agora cinco meses), nenhuma defesa juntou um único print, gravação ou documento importante ou pertinente para o processo, demonstrando total ausência de prejuízo.
A defesa de Augusto Heleno Ribeiro Pereira arguiu violação ao sistema acusatório e ao direito ao silêncio. O Ministro refutou a ideia de que o juiz deve ser “uma samambaia jurídica”, afirmando que o juiz não só pode como deve fazer perguntas nos interrogatórios para buscar a verdade real, desde que não se pleiteie o direito ao silêncio. Ele citou decisão unânime do STF na ADI 6298, que reafirmou a possibilidade de complementação da prova pelo juiz, e a fala do Ministro Luís Roberto Barroso, que defende que o juiz deve buscar a verdade real no processo penal. Em relação ao direito ao silêncio de Augusto Heleno, o Ministro indicou que foi o próprio réu quem divagou nas respostas, não sendo induzido pelo relator, e que o advogado pediu para ele responder sim ou não, não havendo violação de seu direito ao silêncio.
A alegação de ilicitude probatória na juntada de prints ou violação da cadeia de custódia, arguida pela defesa de Walter Souza Braga Neto, também foi rejeitada. O Ministro lembrou que o próprio réu, em seu interrogatório, confessou recordar-se das mensagens (prints) juntadas aos autos, alegando, contudo, que estariam desconexas, mas sem provar que seriam falsas ou que a Polícia Federal teria manipulado esses prints.
Por fim, a alegação de nulidade da acareação realizada entre Walter Souza Braga Neto e Mauro César Barbosa Cid foi afastada. O Ministro recordou que a acareação é um ato de instrução do juízo, e não da defesa, e foi realizada nos moldes tradicionais para evitar pressões indevidas e vazamentos, sem prejuízo à defesa. A impossibilidade de observar expressões faciais não desqualifica o ato jurídico, pois o julgamento é jurídico, não psicológico.
1.2. O Mérito: A Organização Criminosa e a Cronologia dos Atos Executórios
O Ministro ressaltou que a materialidade dos crimes é incontroversa, tendo sido reconhecida pelo STF em mais de 474 ações penais e por nove votos a dois no plenário do STF, bem como pela Primeira Turma, e em mais de 500 acordos de não persecução penal. A questão a ser dirimida, portanto, era a autoria das infrações penais imputadas aos réus. A ação penal lastreou-se em provas produzidas pela Polícia Federal e complementadas em juízo, com respeito ao contraditório e à ampla defesa.
A acusação narra a existência de uma organização criminosa, com atuação entre julho de 2021 e 8 de janeiro de 2023, sob a liderança de Jair Messias Bolsonaro, com divisão de funções, estrutura permanente e hierarquizada. Os objetivos dessa organização eram duplos e interligados: primeiro, atentar contra o Estado Democrático de Direito, buscando restringir ou suprimir, mediante grave ameaça, a atuação de um dos Poderes de Estado, especialmente o Poder Judiciário (STF e TSE); segundo, a perpetuação no poder ou a tentativa de Golpe de Estado, buscando depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído, impedindo a alternância democrática.
O Ministro destacou a autonomia dos crimes previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. Enquanto o Art. 359-L (abolição violenta do Estado democrático de direito) protege o próprio Estado Democrático de Direito, criminalizando a tentativa de restringir o exercício dos poderes constitucionais (ex: o Judiciário), o Art. 359-M (golpe de Estado) protege o governo legitimamente constituído (o Executivo), criminalizando a tentativa de depor esse governo por violência ou grave ameaça. Ambas as condutas, na presente hipótese, ofenderam bens jurídicos distintos e foram praticadas em momentos diversos com desígnios autônomos, impedindo a aplicação da consunção ou absorção. Para ilustrar a autonomia dos delitos, o Ministro citou exemplos históricos, como a Noite da Agonia (1823), que seria tipificada como Art. 359-L, e o Golpe de 1930, que seria tipificado como Art. 359-M. O Golpe Militar de 1964, por exemplo, seria Art. 359-M, mas atos como a ampliação do número de ministros do STF ou a restrição do habeas corpus via AI-5 tipificariam o Art. 359-L.
O voto detalhou 13 atos executórios sequenciais que demonstraram a interligação da organização criminosa para a consecução de seus objetivos.
- Utilização de órgãos públicos (ABIN e GSI): Desde junho de 2021, a organização criminosa iniciou atos executórios para monitorar adversários políticos e estruturar a execução de sua estratégia, visando atentar contra o Poder Judiciário e a Justiça Eleitoral, desacreditando-os para deslegitimar um eventual resultado negativo nas eleições de 2022 e se perpetuar no poder. Foram encontrados na agenda de Augusto Heleno Ribeiro Pereira anotações golpistas, incluindo planos para desacreditar o sistema eleitoral e se manter no poder. A “ABIN paralela” atuou como central de contrainteligência, realizando monitoramento e perseguição a adversários políticos. Alexandre Ramagem, como diretor da ABIN, produziu documentos com argumentos contrários ao sistema eletrônico de votação, utilizados posteriormente por Jair Bolsonaro, demonstrando “unidade de desígnios”. Anotações na agenda de Heleno e documentos em posse de Ramagem indicavam a intenção de deslegitimar as urnas eletrônicas e o Poder Judiciário.
- Atos executórios públicos com graves ameaças à Justiça Eleitoral: A partir de toda essa produção e utilização dos órgãos públicos, Jair Bolsonaro começou a dar sequência aos atos executórios em atos públicos, insistindo na vulnerabilidade das urnas e na ausência de legitimidade da Justiça Eleitoral, propagando desinformação. As lives de Jair Bolsonaro (29/07/2021, 04/08/2021) e a entrevista (03/08/2021) foram utilizadas para disseminar desinformação massiva, com a presença e o endosso de Anderson Torres e Augusto Heleno na live de 29/07/2021, conferindo credibilidade às ameaças e ao discurso de que as Forças Armadas apoiariam um eventual afastamento do Judiciário. Bolsonaro utilizou a figura de Heleno para dar credibilidade ao discurso de que as Forças Armadas iriam acolher o chamamento do povo. Anderson Torres, então Ministro da Justiça, endossou a falsa narrativa, emprestando sua credibilidade para afirmar a possibilidade de fraudes nas urnas eletrônicas. Jair Bolsonaro afirmou em entrevista que “só saio preso, morto ou com a vitória”, deixando claro que jamais aceitaria uma derrota nas urnas.
- Tentativa com emprego de grave ameaça de restringir o exercício do Poder Judiciário (7 de setembro de 2021): Nesta data, Jair Bolsonaro, em seus discursos em Brasília e São Paulo, passou a fazer uma série de ameaças e afirmou que descumpriria ordens judiciais, instigando milhares de pessoas contra o Poder Judiciário e o STF. Ele se dirigiu ao então presidente do STF, Ministro Luiz Fux, dizendo: “Ou o chefe desse poder enquadra o seu ou esse poder pode sofrer aquilo que não queremos”, o que o Ministro Alexandre de Moraes caracterizou como uma grave ameaça de impedir ou restringir o livre exercício do Poder Judiciário. As frases foram consideradas uma confissão do crime de abolição do Estado Democrático de Direito.
- Reunião ministerial de 5 de julho de 2022: A organização criminosa utilizou um órgão público (reunião ministerial oficial) para fins criminosos, contando com a participação de Jair Bolsonaro, Walter Souza Braga Neto (então candidato a vice), Anderson Gustavo Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Mauro Cid, além dos comandantes das Forças Armadas. Jair Bolsonaro instigou seus colaboradores a disseminarem desinformação sobre fraudes nas urnas, atacou ministros do STF e do TSE, e afirmou que “daqui pra frente quero que todo ministro fale o que eu vou falar e vou mostrar”. Augusto Heleno disse: “se tiver que dar soco na mesa, é antes das eleições”, e Paulo Sérgio Nogueira se colocou “na linha de contato com o inimigo” (TSE). Anderson Torres endossou as falas de Bolsonaro, comparando a situação à Bolívia e dizendo que montaria um grupo de policiais federais para atuar incisivamente nas eleições.
- Reunião com embaixadores em 18 de julho de 2022: Anunciada na reunião ministerial, Jair Bolsonaro utilizou a TV Brasil e milícias digitais para propagar notícias fraudulentas a embaixadores, deslegitimando o Judiciário e o sistema eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reconheceu a total ilegalidade e o desvirtuamento do conteúdo da reunião, que disseminou severa desordem informacional e graves ataques a ministros.
- Utilização indevida da estrutura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no segundo turno das eleições (30/10/2022): Sob a coordenação de Anderson Torres, a PRF realizou uma operação ilícita, disfarçada de fiscalização de veículos, em municípios onde o candidato Lula obteve mais votos, principalmente no Nordeste, com o objetivo de obstruir eleitores e impedi-los de chegar aos locais de votação. A cronologia comprova a ilicitude dessa conduta, liderada por Jair Bolsonaro, com participação de Anderson Torres, a quem a PRF estava subordinada. Foi necessária uma decisão do TSE para determinar o fim dessa operação.
- Utilização indevida da estrutura das Forças Armadas no relatório de fiscalização do sistema eletrônico de votação: Por determinação de Jair Bolsonaro, Paulo Sérgio Nogueira atrasou a divulgação de um relatório que, embora atestasse a lisura das eleições, era considerado “inoportuno e perigoso” pela organização criminosa. Após a divulgação forçada, o Ministério da Defesa, sob o comando de Paulo Sérgio, emitiu uma nota “esdrúxula” que, embora não apontasse fraudes, “não excluía a possibilidade de existência de fraude ou inconsistência”, visando manter o discurso golpista e impedir a posse do presidente e vice-presidentes eleitos.
- Diversos atos executórios após o segundo turno das eleições: Incluíram a live de 4 de novembro de 2022, ações de monitoramento de autoridades (inclusive do Presidente eleito Lula e do próprio relator), e uma representação eleitoral do PL pedindo a anulação de votos de 48% das urnas do segundo turno (onde Lula venceu), evidenciando má-fé e litigância de má-fé. A intensificação das discussões sobre um estado de exceção ocorreu após a recusa do recurso do PL.
- Reunião dos “Kids Pretos” (Forças Especiais) em 28 de novembro de 2022 e a “Carta aos Comandantes”: A acusação narra o planejamento do “Punhal Verde Amarelo” e “Operação Copa 2022”, que visava o assassinato de autoridades, incluindo o presidente do TSE (Ministro Alexandre de Moraes) e o presidente e vice-presidente eleitos (Lula e Alckmin). Documentos detalhados, incluindo chances de êxito e armamento, foram impressos no Palácio do Planalto, com indícios de financiamento pelo agronegócio. Este plano foi abortado pela recusa dos comandantes do Exército e da Aeronáutica em aderir ao golpe. Jair Bolsonaro tinha conhecimento e anuiu com o plano, conforme áudio de Mário Fernandes. A tentativa de bomba no aeroporto de Brasília em 24/12/2022 e os ataques violentíssimos no dia da diplomação (12/12/2022), com queima de ônibus e tentativa de invasão da PF, foram atos executórios ensufados pelo discurso golpista. Walter Souza Braga Neto manteve contato com líderes de acampamentos ilegais, incentivando-os a “não perder a fé”.
- Operação Luneta, Operação 142 e discurso pós-golpe: Continuou o monitoramento do presidente eleito Lula. Documentos como “desenho OP luneta” detalhavam fases do golpe, e “operação 142” (encontrada na mesa do assessor de Walter Braga Neto na sede do PL) indicava “interrupção do processo de transição” e “Lula não sobe a rampa”. Um texto impresso sobre “estado de sítio” foi encontrado na sala de Jair Bolsonaro na sede do PL, em claro alinhamento com o plano de perpetuação no poder.
- Elaboração da minuta do golpe de estado e apresentação aos comandantes das Forças Armadas: Jair Bolsonaro reuniu-se com comandantes para discutir a quebra da normalidade constitucional. Mauro Cid confirmou que Bolsonaro recebeu uma minuta de decreto de golpe de estado, prevendo a prisão de ministros do STF e do presidente do Senado. Os comandantes Freire Gomes e Batista Júnior recusaram-se a apoiar a proposta, enquanto Almir Garnier demonstrou adesão, colocando suas tropas “à disposição” de Bolsonaro. O teor golpista das minutas, que evoluíram em redação mas mantiveram o mesmo conteúdo de impedir a posse, extinguir o TSE e criar uma comissão de irregularidade eleitoral, foi confirmado pelas testemunhas.
- Tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro de 2023: Foi a culminância de todos os atos executórios. A organização criminosa, ao não conseguir o autogolpe antes do término do mandato, continuou instigando e coordenando os movimentos que resultaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes. A autoria mediata de Jair Bolsonaro foi comprovada por uma mensagem de apoio aos movimentos golpistas, postada e posteriormente apagada.
- Planejamento de gabinete de crise pós-consumação do golpe de estado: Documentos intitulados “Gabi Crise” foram impressos no Palácio do Planalto, detalhando a implementação de um gabinete de crise chefereado por Augusto Heleno e coordenado por Braga Neto, evidenciando o planejamento de uma estrutura para assumir o poder após o golpe. Esses documentos corroboram a existência de uma organização criminosa que tomou de assalto as estruturas republicanas para se perpetuar no poder.
2. Fundamentos Jurídicos Utilizados
Os fundamentos jurídicos para a decisão do Ministro basearam-se na tipificação das condutas como crimes contra o Estado Democrático de Direito e contra a administração pública, em concurso de pessoas e concurso material.
O Ministro fundamentou que os réus integravam uma Organização Criminosa Armada (Lei 12.850/2013, Art. 2º, §§ 2º e 4º, II). Esta estrutura criminosa era estável e permanente, hierarquizada e com divisão de tarefas, sob a liderança de Jair Messias Bolsonaro. A organização utilizou a estrutura do Estado para seus fins, contando com a expertise de táticas militares. Para a configuração do crime, basta que o agente tenha aderido a ser membro da organização criminosa e esteja à disposição de exercer a sua parte da tarefa que lhe for destinada.
Foi imputado o crime de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (Código Penal, Art. 359-L). Este crime tipifica a conduta de tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes Constitucionais (Judiciário e Legislativo). O Ministro enfatizou que o chefe do Executivo, no exercício do mandato, pode cometer este crime ao tentar restringir os outros poderes, sem que haja um golpe de Estado, pois o bem jurídico tutelado é o próprio Estado Democrático de Direito.
O delito de Golpe de Estado (Código Penal, Art. 359-M) também foi aplicado. Este crime prevê tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. O bem jurídico tutelado é o próprio Poder Executivo, e a norma visa proteger contra rupturas ditatoriais, incluindo intervenções militares. O Ministro salientou que não é necessária a consumação do golpe para a configuração dos crimes, bastando a tentativa, pois, na história da humanidade, os golpistas bem-sucedidos não se autoresponsabilizam.
Os réus também foram imputados por Dano Qualificado (Código Penal, Art. 163, parágrafo único, III, IV e V), devido à violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado, em referência aos atos de 8 de janeiro de 2023.
O Ministro aplicou o conceito de Concurso de Pessoas (Código Penal, Art. 29). Segundo este princípio, “quem de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este combinadas, na medida de sua culpabilidade”. A divisão de tarefas e a intensa interação e direto acesso dos réus com o líder da organização foram evidenciadas, comprovando a atuação efetiva e a prática de atos executórios pela organização criminosa.
O voto reafirmou a possibilidade de Concurso Material entre os delitos previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, o que já havia sido reconhecido pela Primeira Turma e pelo Plenário do STF em diversos casos. A análise fática demonstrou a total autonomia entre os tipos e a ofensa a bens jurídicos distintos, com desígnios autônomos, impedindo a aplicação da consunção ou absorção, que só ocorreria se houvesse unidade de desígnio e um único resultado criminoso.
3. Conclusão do Voto do Ministro para Cada Réu
Diante de todo o exposto, o Ministro Alexandre de Moraes votou pela procedência total da ação penal para condenar os réus pelas práticas das condutas criminosas imputadas.
Jair Messias Bolsonaro foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, com a imputação específica de liderar a organização criminosa. Sua atuação como chefe de Estado e de governo foi fundamental para reunir indivíduos de extrema confiança do alto escalão do governo federal e utilizar a estrutura do Estado brasileiro para seu projeto autoritário.
Almir Garnier Santos foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Sua adesão ao projeto autoritário de poder, demonstrada pela disposição de suas tropas ao líder da organização e pela recusa em transmitir o cargo ao sucessor, foi crucial, além de sua posição a favor do golpe ser bastante conhecida entre os comandantes.
Anderson Gustavo Torres foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Sua participação abrange desde o endosso em lives e reuniões ministeriais até a utilização indevida da PRF e a apreensão de uma minuta do golpe em sua residência, mostrando unidade de desígnios.
Augusto Heleno Ribeiro Pereira foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Ele teve papel central na utilização da ABIN e do GSI para monitoramento e desinformação, e em reuniões estratégicas para o golpe, com anotações golpistas em sua agenda e planejamento de um “gabinete de crise” pós-golpe.
Mauro César Barbosa Cid foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Ele desempenhou papel fundamental como ajudante de ordens de Jair Bolsonaro e principal interlocutor com os demais integrantes da organização criminosa, com ampla comprovação nos autos, e seus benefícios como réu colaborador serão analisados no mérito.
Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Como Ministro da Defesa, ele atrasou a divulgação de relatório favorável às urnas, emitiu nota “esdrúxula” para manter o discurso de fraude e convocou reuniões para apresentar minutas de decreto golpista.
Walter Souza Braga Neto foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de estado e dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Sua participação incluiu a presença em reunião ministerial, o endosso ao discurso golpista, o contato com líderes de acampamentos e o planejamento de um “gabinete de crise” pós-golpe.
Alexandre Rodrigues Ramagem foi condenado pelas infrações de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de estado, deixando de analisar condutas cuja ação penal foi suspensa por resolução da Câmara dos Deputados. Sua contribuição material na construção da falsa narrativa sobre as urnas e seu alinhamento com a liderança da organização foram destacados.
As condenações consideram as regras de concurso de pessoas e concurso material, evidenciando a complexidade e a intencionalidade das ações do grupo.
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