
A culpabilidade como vetor autônomo de dosimetria penal
No contexto da teoria da pena adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a culpabilidade assume papel que extrapola o conceito dogmático integrante da estrutura do delito. Tradicionalmente definida como o juízo de censura que recai sobre o agente dotado de imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, a culpabilidade, no plano da dosimetria da pena, adquire função valorativa autônoma, conforme delineado pelo caput do artigo 59 do Código Penal.
A jurisprudência e a doutrina convergem no sentido de que a culpabilidade, como circunstância judicial, serve à finalidade de medir a intensidade da reprovação que determinada conduta atrai, sob uma ótica axiológica e não meramente descritiva. Trata-se de uma valoração qualitativa da conduta, que visa aferir o grau de consciência e autodeterminação do agente no cometimento do ilícito penal.
Ao estabelecer os critérios para a fixação da pena-base, o legislador ordinário brasileiro previu, entre os vetores a serem ponderados, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima. Diferentemente da tipicidade ou das agravantes legais, esses elementos constituem fatores extralegais de individualização da pena, atribuídos ao prudente arbítrio do julgador, desde que motivadamente.
No plano jurisprudencial, a culpabilidade vem sendo interpretada como a medida da maior ou menor reprovabilidade da conduta concreta, de modo que seu uso como fundamento para exasperação da pena-base demanda mais do que mera referência abstrata à gravidade do delito: exige demonstração da efetiva intensidade do dolo, da frieza, da persistência do desígnio criminoso ou de qualquer outro elemento que revele grau superior de censurabilidade ética e jurídica.
É precisamente nesse cenário que a premeditação ganha relevo: ao evidenciar a racionalidade do agente na preparação do crime, expressa não apenas a vontade de delinquir, mas a capacidade de deliberar com antecedência, o que amplifica o juízo de censura e, por conseguinte, autoriza a majoração da pena à luz da culpabilidade, desde que observados os limites constitucionais e legais.
Premeditação como critério de reprovabilidade acentuada
A noção de premeditação, ainda que não expressamente prevista como circunstância judicial no artigo 59 do Código Penal, revela-se elemento de intensa relevância para o juízo de culpabilidade na dosimetria da pena. Trata-se de conceito que designa a deliberação racional, refletida e anterior à execução do crime, em oposição à conduta impulsiva, irrefletida ou provocada por fator exógeno imediato.
Do ponto de vista ético-jurídico, a premeditação acentua o desvalor da conduta e, mais ainda, do agente, pois denota não apenas o dolo na sua forma mais pura, mas também o exercício consciente da liberdade de escolha em favor da prática do ilícito penal. O agente que delibera, planeja e organiza a execução de um crime, agindo com pleno domínio de suas faculdades, exibe maior grau de autodeterminação e, portanto, maior censurabilidade normativa.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 2.174.008, sedimentou o entendimento de que a premeditação pode ser legitimamente inserida no campo da culpabilidade judicial, desde que respeitados os vetores de legalidade e motivação. O relator, Desembargador Convocado Otávio de Almeida Toledo, foi enfático ao destacar que a premeditação, por não constituir elementar típica, agravante genérica nem qualificadora, não se encontra vedada como critério de individualização negativa da pena, desde que não haja sobreposição indevida com outras causas de aumento.
Do ponto de vista dogmático, a premeditação representa um indicador de maior intensidade do dolo, ou, em termos mais amplos, da vontade perversa reiterada e cultivada com frieza, o que torna a conduta mais reprovável sob os padrões axiológicos do direito penal contemporâneo. Ao distinguir entre o agir espontâneo e o agir premeditado, o julgador reconhece que a responsabilidade penal não se limita à constatação da tipicidade e da culpabilidade formal, mas exige um juízo proporcional de reprovação em função das circunstâncias subjetivas do caso concreto.
Portanto, o reconhecimento da premeditação como fator de exasperação da pena-base reforça a função ética do direito penal: não apenas reprimir condutas antijurídicas, mas fazê-lo em medida correspondente à liberdade com que o agente optou pelo desvio normativo. Ao agir com cálculo e antecedência, o réu demonstra maior domínio do fato e, consequentemente, maior responsabilidade.
Os limites legais: elementar, agravante ou qualificadora
A utilização da premeditação como critério de majoração da pena-base, à luz da circunstância judicial da culpabilidade, impõe a observância de limites normativos claros, sob pena de violação ao princípio do ne bis in idem e de comprometimento da legitimidade da dosimetria penal.
Consoante a tese vinculante fixada pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no REsp 2.174.008, a valoração negativa da culpabilidade pela premeditação somente será admissível quando tal elemento não constituir: (i) elementar do tipo penal; (ii) circunstância agravante; ou (iii) qualificadora do delito. Essa delimitação é essencial para assegurar a coerência dogmática da resposta penal e para preservar a segurança jurídica do réu no curso do processo penal.
Com efeito, a elementar do tipo penal é aquilo que integra o próprio núcleo da descrição legal da conduta criminosa, sendo imprescindível à sua subsunção típica. Se a premeditação já é prevista pelo legislador como requisito constitutivo do tipo penal — como ocorre, por exemplo, em certas formas qualificadas do homicídio doloso —, a sua nova valoração no momento da fixação da pena-base configuraria uma inaceitável duplicidade punitiva.
Do mesmo modo, quando a premeditação for expressamente prevista como agravante genérica ou circunstância qualificadora, como ocorre em tipos penais que exigem o dolo direto e o planejamento como condição de sua gravidade específica, não poderá o julgador utilizá-la novamente na primeira fase da dosimetria. Tal conduta configuraria, a um só tempo, exasperação indevida da sanção e subversão do sistema trifásico adotado no artigo 68 do Código Penal.
A jurisprudência do STJ tem sido enfática na condenação ao uso simultâneo de um mesmo fato para justificar aumentos sucessivos da pena, ainda que em fases distintas da dosimetria. Trata-se de verdadeira concretização do princípio da vedação ao bis in idem, que possui amparo constitucional implícito no devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) e expresso em diversos tratados internacionais de direitos humanos.
Desse modo, para que a premeditação possa ser utilizada como fundamento para a valoração negativa da culpabilidade, é imprescindível que ela não seja absorvida por nenhuma outra qualificadora ou agravante já reconhecida. Além disso, a decisão judicial que assim a considere deve explicitar com clareza essa independência valorativa, a fim de que não haja sobreposição fática ou redundância punitiva.
O respeito a tais balizas não apenas preserva a integridade do sistema penal, como também reafirma o compromisso da jurisdição criminal com a racionalidade, a coerência argumentativa e a proporcionalidade na aplicação da pena.
A necessidade de fundamentação concreta

A possibilidade de se valorar negativamente a culpabilidade com base na premeditação do crime não autoriza o julgador a incorrer em automatismos decisórios. Conforme estabelecido na segunda tese firmada pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 2.174.008, a exasperação da pena-base não pode ser presumida ou decorrente de fórmulas genéricas, devendo estar lastreada em fundamentação específica, compatível com os fatos do caso concreto e com o grau de reprovabilidade ético-jurídica da conduta perpetrada.
O imperativo da motivação concreta da decisão penal decorre diretamente do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, que impõe ao Poder Judiciário o dever de explicitar, de maneira racional e suficiente, as razões pelas quais um determinado fato é tomado como mais ou menos reprovável, especialmente quando tal valoração influencia a quantidade de pena privativa de liberdade imposta ao réu.
No plano infraconstitucional, o artigo 59 do Código Penal exige que a análise das circunstâncias judiciais seja feita com base nos elementos constantes dos autos, permitindo-se ao juiz ponderar as condições pessoais do agente e as circunstâncias do crime, desde que de forma individualizada e razoável. O julgador não pode presumir a existência de dolo intenso, crueldade ou frieza — deve demonstrar, com base em provas, em que medida a premeditação revelou maior censurabilidade, distinguindo-a de meros atos preparatórios usuais em práticas delitivas.
É insuficiente, por exemplo, afirmar que houve premeditação apenas porque o crime foi cometido com arma branca ou com certo intervalo temporal entre o planejamento e a execução. Faz-se necessário descrever como o agente planejou o crime com racionalidade, organização e tempo suficiente para eventual desistência, mas, ainda assim, persistiu no propósito ilícito. Somente essa conduta revela o desvalor acentuado da culpabilidade, passível de justificar a elevação da pena-base.
A ausência de fundamentação concreta e individualizada invalida a valoração negativa, implicando nulidade da sentença ou acórdão na parte referente à dosimetria, conforme pacífica jurisprudência do próprio STJ e do Supremo Tribunal Federal. Nesses casos, impõe-se a redução da pena ou a fixação de nova reprimenda em conformidade com os limites legais e constitucionais da atividade jurisdicional punitiva.
Dessa forma, o reconhecimento da premeditação como circunstância judicial agravante não pode servir de atalho para o endurecimento automático da resposta penal, sob pena de transgressão aos pilares do devido processo legal, da individualização da pena e da vedação ao arbítrio judicial.
Considerações finais
A reafirmação, pelo Superior Tribunal de Justiça, da possibilidade de valoração negativa da culpabilidade com fundamento na premeditação do delito representa passo significativo na consolidação de uma jurisprudência penal que equilibra tecnicidade dogmática, coerência hermenêutica e respeito aos direitos fundamentais do réu. Ao exigir fundamentação concreta, individualizada e proporcional, o STJ confere densidade normativa ao princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da Constituição Federal), conferindo-lhe efetividade prática na etapa de fixação da sanção penal.
A decisão proferida no julgamento do REsp 2.174.008/AL, sob a sistemática dos recursos repetitivos (Tema 1.318), não inaugura um novo parâmetro punitivo, mas sim qualifica e racionaliza a dosimetria penal, ao distinguir com clareza os limites entre o planejamento que intensifica o desvalor da conduta e a reiteração indevida de fundamentos já absorvidos por elementares, agravantes ou qualificadoras.
Sob esse prisma, a premeditação, quando presente e devidamente demonstrada nos autos, traduz um grau mais intenso de autodeterminação e cálculo, justificando uma censura penal mais rigorosa. Contudo, essa maior reprovabilidade somente se legitima na estrutura do processo penal quando vinculada a uma decisão jurisdicional devidamente motivada, que explicite, com base em elementos concretos, a razão pela qual o comportamento do agente se distancia da média das condutas típicas.
Do ponto de vista sistêmico, o julgado reafirma a centralidade do art. 59 do Código Penal como instrumento qualificado de individualização judicial da pena, e não como cláusula de estilo para aplicação automática de majorações. A fixação das duas teses vinculantes delimita a zona de incidência legítima da premeditação no contexto da dosimetria e impede abusos decorrentes da imprecisão argumentativa ou da sobreposição punitiva indevida (bis in idem).
Em última análise, o posicionamento adotado pelo STJ reafirma o papel da jurisprudência como garantidora da racionalidade punitiva e da integridade do sistema penal, demonstrando que a legitimidade da pena estatal não reside apenas na sua previsão abstrata, mas, sobretudo, na sua aplicação concreta, respeitosa aos postulados constitucionais e aos limites da própria norma penal.
Hey,
o que você achou deste conteúdo? Conte nos comentários.