
A Lei nº 15.150/2025, que criminaliza tatuagens e piercings em cães e gatos com fins estéticos, representa um marco evolutivo significativo no direito penal ambiental brasileiro. Sancionada em 17 de junho de 2025 pelo Presidente em exercício Geraldo Alckmin, a norma altera o artigo 32 da Lei 9.605/98, inserindo o parágrafo 1º-B que equipara essas práticas aos maus-tratos já tipificados. Esta legislação posiciona o Brasil em alinhamento com tendências internacionais de proteção animal, estabelecendo penas de reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição da guarda para quem realizar ou permitir tais procedimentos, consolidando uma evolução jurisprudencial que reconhece crescentemente a dignidade animal como valor autônomo no ordenamento jurídico.
Estrutura técnico-dogmática do novo tipo penal
O parágrafo 1º-B do artigo 32 da Lei 9.605/98 apresenta características técnicas específicas que merecem análise detalhada. O tipo penal possui natureza de crime próprio por extensão, equiparando legalmente as condutas de tatuar e colocar piercings aos maus-tratos básicos do caput. A estrutura normativa contempla dois núcleos típicos distintos: “realizar” (executar diretamente o procedimento) e “permitir” (autorizar ou tolerar que terceiro o pratique), abrangendo tanto autores diretos quanto partícipes por omissão.
O elemento subjetivo específico “com fins estéticos” funciona como delimitador crucial do tipo, excluindo da criminalização procedimentos com finalidade veterinária legítima, como tatuagens de identificação ou microchipagem. Esta distinção é fundamental para preservar a medicina veterinária legítima enquanto coíbe práticas meramente cosméticas. O objeto material restringe-se especificamente a cães e gatos, não abrangendo outras espécies animais, demonstrando escolha legislativa focada nos animais domésticos de maior proximidade afetiva com os humanos.
Panorama da legislação internacional comparada
A análise da legislação mundial revela tendência global consolidada de proibição de modificações corporais estéticas em animais domésticos. A Convenção Europeia para Proteção de Animais de Companhia (1987) estabeleceu o marco internacional, proibindo explicitamente “operações cirúrgicas com o propósito de modificar a aparência de um animal de companhia”, incluindo corte de cauda, orelhas, devoalização e desunhamento.
Na Europa, países como Alemanha proíbem essas práticas desde 1987, com o Animal Protection Act estabelecendo penalidades de até €25.000 e três anos de prisão. O Reino Unido implementou proibições rigorosas através do Animal Welfare Act 2006, prevendo multas significativas e prisão de até cinco anos. Austrália e Nova Zelândia adotaram proibições nacionais abrangentes, com a Nova Zelândia estabelecendo multas de $300 a $15.000 dependendo da violação.
Contrastando com essa tendência, os Estados Unidos mantêm abordagem fragmentada, com apenas nove estados regulamentando ear cropping e limitações mínimas ao tail docking. Esta disparidade posiciona a América do Norte como a principal região onde essas práticas ainda são amplamente toleradas, enquanto outras jurisdições avançaram significativamente na proteção animal.
Evolução jurisprudencial do conceito de maus-tratos
A jurisprudência brasileira demonstra evolução paradigmática clara no tratamento jurídico dos animais. O Supremo Tribunal Federal, através da ADPF 640 (2021), consolidou entendimento sobre dignidade animal ao declarar inconstitucional interpretações que autorizem abate imediato de animais apreendidos em maus-tratos. O Superior Tribunal de Justiça, pelo REsp 1.713.167/SP (2018), reconheceu tratamento jurídico diferenciado para animais, superando o conceito civilista de “coisa”.
Tribunais estaduais desenvolveram precedentes específicos sobre modificações corporais. O TJ-SP condenou veterinário por conchectomia a 2 anos, 4 meses e 24 dias de reclusão, enquanto o TJ-PR estabeleceu precedente histórico no caso “Spike e Rambo”, reconhecendo capacidade processual dos animais baseada no Decreto 24.645/1934.
A evolução conceitual de maus-tratos percorreu três fases: tradicional (até 2008) com conceito restritivo focado apenas em violência física evidente; transição (2008-2020) com reconhecimento da senciência animal e proibições específicas; e atual (2020-presente) com conceito amplo abrangendo qualquer conduta causadora de sofrimento desnecessário.
Posicionamento doutrinário e técnico especializado
A doutrina brasileira desenvolveu base teórica sólida para proteção animal. Vicente de Paula Ataíde Júnior desenvolve a “teoria das capacidades jurídicas animais” baseada na dignidade animal, enquanto Heron José de Santana Gordilho defende que animais são sujeitos de direitos fundamentais de 4ª dimensão. Paulo Affonso Leme Machado e Édis Milaré fornecem fundamentação ambiental robusta através de suas obras seminais.
O Conselho Federal de Medicina Veterinária estabeleceu marco regulatório pioneiro através das Resoluções 877/2008, 1027/2013 e 1236/2018, proibindo cirurgias estéticas mutilantes por considerá-las “desnecessárias” e impeditivas da “expressão do comportamento natural da espécie”. Esta regulamentação técnica precedeu e fundamentou a criminalização posterior.
A literatura acadêmica identifica tensão entre correntes bem-estarista, abolicionista e jurídica mainstream, refletindo evolução de perspectiva antropocêntrica para biocêntrica no ordenamento jurídico. O conceito de dignidade animal consolidou-se como “valor intrínseco derivado da senciência”, fundamentando proibições de procedimentos desnecessários.
Análise de política criminal e efetividade normativa
A criminalização dessas práticas apresenta justificativas sólidas de política criminal. O mercado afetado representava “menos de 1% do faturamento do setor pet” (R$ 77 bilhões em 2024), minimizando impactos econômicos enquanto maximiza valor simbólico da proteção animal. Dados do CFMV indicam efetividade preventiva: veterinários que realizavam esses procedimentos “se sentiram reprimidos e entenderam que é errado”.
O baixo custo de implementação resulta do fato de que procedimentos estéticos já estavam “em desuso” antes da proibição formal, facilitando transição normativa. A abordagem preventiva/educativa mostrou-se mais importante que a repressiva, sugerindo que o valor simbólico da criminalização foi fundamental para mudança comportamental.
Alternativas regulatórias não penais existem através de regulamentação administrativa via CRMVs, códigos de ética profissional e fiscalização sanitária. Contudo, a experiência sugere que para condutas de baixo volume econômico mas alto valor simbólico, a criminalização pode ser justificada quando há consenso profissional prévio.
Precedentes sobre modificações corporais específicas
A jurisprudência consolidou entendimentos sobre modificações corporais específicas. Conchectomia (corte de orelhas) é proibida desde 2008 pela Resolução CFMV 877/2008, com jurisprudência consolidando configuração de crime ambiental. Caudectomia (corte de cauda) foi vedada para fins estéticos desde 2013, fundamentada no prejuízo à comunicação e equilíbrio animal. Onicectomia (remoção de garras) possui proibição absoluta para fins não terapêuticos.
Os critérios jurisprudenciais consolidados para configuração de maus-tratos incluem: desnecessariedade da intervenção para saúde animal, finalidade exclusivamente estética, causação de dor ou limitação comportamental, e ausência de indicação veterinária específica. Esta sistematização oferece segurança jurídica para distinção entre prática veterinária legítima e maus-tratos.
Impactos práticos na medicina veterinária
A nova legislação promove mudanças curriculares com remoção do ensino de técnicas estéticas desnecessárias e redirecionamento profissional para procedimentos medicamente justificados. Custos de compliance mostram-se baixos devido ao caráter marginal desses procedimentos no mercado veterinário brasileiro.
Questões de enforcement incluem limitações orçamentárias dos órgãos fiscalizadores e necessidade de denúncias para acionamento do sistema. Mecanismos de controle operam via denúncias ao DEPA, Ministério Público e Secretarias de Meio Ambiente, complementados por fiscalização dos CRMVs através de processos ético-disciplinares.
Aspectos de política criminal comparada
A análise internacional revela diferentes abordagens regulatórias. O modelo europeu baseia-se em convenção internacional com proibições amplas e exceções limitadas. O modelo norte-americano caracteriza-se por regulamentação fragmentada e falta de padronização federal. O modelo Commonwealth (Austrália, Nova Zelândia) implementa proibições nacionais abrangentes com penalidades significativas.
O modelo brasileiro combina elementos dos diferentes sistemas: fundamentação constitucional forte (art. 225, §1º, VII), regulamentação técnica prévia (CFMV), e criminalização posterior com penas significativas. Esta abordagem híbrida mostrou-se adequada às circunstâncias específicas do mercado nacional.
Conclusão
A Lei nº 15.150/2025 representa evolução natural e necessária do sistema jurídico brasileiro de proteção animal. Tecnicamente bem estruturada, a norma preenche lacuna importante ao criminalizar especificamente práticas estéticas desnecessárias em cães e gatos, alinhando-se com tendência internacional consolidada e jurisprudência nacional evolutiva.
A efetividade normativa beneficia-se de convergência entre regulamentação profissional prévia, consenso técnico-científico, baixo impacto econômico e alto valor simbólico. O recurso ao direito penal mostra-se justificado pela necessidade de reforçar proteção constitucional contra crueldade animal, especialmente quando alternativas administrativas alone se mostraram insuficientes para coibir completamente essas práticas.
A implementação bem-sucedida desta legislação consolidará o Brasil como referência internacional em proteção animal, demonstrando que evolução jurídica pode ocorrer de forma eficiente quando fundamentada em base técnica sólida, consenso profissional e alinhamento com valores constitucionais fundamentais. A experiência sugere modelo replicável para outras áreas de proteção animal, contribuindo para construção de sistema jurídico verdadeiramente biocêntrico.
REFERÊNCIAS
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Novidade legislativa: Lei 15.068/2024 - altera o Código Civil para regulamentar a economia…

Pacote anticrime: Quadro comparativo
CPP alterado: Lei 13.721/2018
Código penal - Atualização legislativa (Leis 13.715 e 13.718 de 2018)
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