Por Henrique Araújo – Professor de Direito

Há 2.500 anos, Sófocles nos apresentou o que talvez seja o caso jurídico mais fascinante da história: uma jovem mulher que desafia o poder do Estado em nome de princípios superiores. Se Antígona fosse julgada hoje, seria condenada por desobediência civil ou absolvida por legítima defesa da dignidade humana? A resposta, como veremos, continua dividindo não apenas tribunais, mas toda a civilização ocidental.
A tragédia grega de 441 a.C. apresenta um conflito que transcende seu tempo: Antígona versus Creonte é, em essência, direito natural versus direito positivo, consciência individual versus ordem estatal, amor familiar versus razão de Estado¹. Como diria minha avó, “cada um puxa a sardinha para o seu lado” – mas aqui, ambos os lados têm argumentos que fariam qualquer advogado perder o sono.
O caso: quando a lei vira tirania
O enredo é simples na superfície, mas devastador em suas implicações. Após a guerra civil tebana, onde os irmãos Etéocles e Polinices se mataram disputando o trono, o novo rei Creonte decreta: Etéocles terá funeral de herói, Polinices será deixado insepulto como traidor. Antígona, irmã de ambos, decide sepultar Polinices mesmo sabendo que isso significa pena de morte.
Creonte representa o positivismo jurídico clássico: a lei é a lei, ponto final. Sua lógica é impecável do ponto de vista estatal – precisa consolidar o poder, estabelecer ordem, mostrar que traição tem consequências. Antígona, por sua vez, invoca algo superior: *”Não foi Zeus quem fez tal lei; essa não é a Justiça dos deuses”*². Para ela, existem leis não escritas, “inabaláveis leis divinas” que antecedem qualquer decreto real.
O interessante é que, diferentemente do que se poderia esperar, Sófocles não demoniza nenhum dos dois. Creonte não é um tirano cartunesco – é um governante que genuinamente acredita estar agindo pelo bem comum. Antígona não é uma romântica ingênua – é uma mulher que compreende perfeitamente as consequências de seus atos e as aceita conscientemente.
A dança eterna: direito natural contra direito positivo
O conflito entre Antígona e Creonte tornou-se o paradigma fundamental da filosofia do direito. Aristóteles, já em sua Retórica, citou a peça como exemplo perfeito de apelo ao direito natural³. A jovem tebana defende que certas leis transcendem qualquer autoridade humana – são universais, permanentes e independentes de qualquer Estado.
Creonte, por outro lado, representa o que hoje chamamos de direito positivo: normas criadas e impostas pelo poder constituído, cuja validade deriva da autoridade que as promulga, não de seu conteúdo moral. É a posição que Hans Kelsen defenderia séculos depois – direito é direito, independentemente de seu mérito ético.
A questão que Sófocles coloca é devastadora: o que acontece quando essas duas concepções colidem frontalmente? A resposta da tragédia é clara: catástrofe. Antígona morre, Hémon (filho de Creonte e noivo de Antígona) se suicida, Eurídice (esposa de Creonte) também se mata. Creonte vence juridicamente, mas perde humanamente.

Hegel viu nesse conflito a essência da tragédia: duas “potências éticas” igualmente válidas se confrontando, sem possibilidade de síntese harmônica⁴. É como aqueles casos em que o advogado olha para o processo e pensa: “Tecnicamente, estou certo, mas moralmente, estou errado”.
Psicologia do conflito: Kohlberg encontra Sófocles
Do ponto de vista da psicologia moral, Antígona e Creonte representam diferentes estágios de desenvolvimento ético. Lawrence Kohlberg classificaria Creonte no estágio convencional (“lei e ordem”) – sua moralidade deriva da necessidade de manter a estrutura social. Antígona opera no estágio pós-convencional – guia-se por princípios universais que transcendem convenções sociais⁵.
Carol Gilligan ofereceria uma leitura diferente: Antígona exemplifica a “ética do cuidado” – sua decisão nasce de responsabilidade relacional, do dever de cuidar do irmão. Creonte representa a “ética da justiça” – abstrata, impessoal, focada em regras universais⁶. Ironicamente, na leitura de Gilligan, é Antígona quem age com base em relacionamentos concretos, enquanto Creonte se perde em abstrações legais.
A obra também antecipa debates contemporâneos sobre desenvolvimento moral. Antígona não age por impulso – ela pondera, considera alternativas, consulta Ismene. Sua decisão é racional e consciente, mesmo parecendo irracional para observadores externos. É o que chamamos hoje de “desobediência civil principiada”.
Antígona no tribunal: precedentes e aplicações
A obra de Sófocles não é apenas filosofia abstrata – tem aplicações jurídicas concretas. Os Julgamentos de Nuremberg basearam-se em lógica similar à de Antígona: certas leis são tão moralmente aberrantes que perdem qualquer legitimidade. A defesa nazista de “cumprimento de ordens legais” foi rejeitada com base em princípios que a jovem tebana reconheceria⁷.
Mais recentemente, os tribunais alemães aplicaram a “doutrina do direito natural” de Gustav Radbruch ao processar guardas fronteiriços que mataram fugitivos do Muro de Berlim. O argumento: leis extremamente injustas não são verdadeiro direito⁸. Antígona aprovaria.
Martin Luther King Jr., em sua “Carta da Prisão de Birmingham”, ecoou argumentos da protagonista sofocleana: *”Uma lei injusta não é lei”*⁹. Gandhi, Mandela, os dissidentes soviéticos – todos enfrentaram o mesmo dilema de Antígona: quando a consciência individual pode legitimamente desafiar o poder estatal?
O direito internacional contemporâneo reconhece normas imperativas (jus cogens) que nenhum Estado pode derrogar – é a “lei divina” de Antígona em versão secular. A Declaração Universal dos Direitos Humanos representa, em última análise, a vitória póstuma da jovem tebana.
Citações imortais: quando a literatura vira jurisprudência
Algumas falas de Antígona tornaram-se aforismos jurídicos. Quando ela declara “Eu nasci para compartilhar amor, não ódio”, está articulando um princípio fundamental: o direito deve servir à dignidade humana, não à vingança estatal. É uma lição que alguns sistemas penais contemporâneos ainda precisam aprender.
A frase “Não foi Zeus quem fez tal lei; essa não é a Justiça dos deuses” tornou-se grito de guerra de todos os que enfrentam leis injustas. Não é coincidência que advogados de direitos humanos citem essa passagem com frequência embaraçosa.
O coro, na famosa “Ode ao Homem”, declara: “Muitas são as maravilhas do mundo, mas a maior de todas é o homem”. Essa celebração da capacidade humana de criar lei e ordem é imediatamente seguida pela advertência: o homem pode usar essa capacidade tanto para o bem quanto para o mal. É uma reflexão sobre o poder e a responsabilidade que todo jurista deveria ter na parede do escritório.
Interpretações modernas: de Hegel a Butler
As interpretações contemporâneas da obra revelam sua extraordinária riqueza. Judith Butler oferece uma leitura pós-estruturalista fascinante: Antígona como figura “queer” que desafia as estruturas normativas de parentesco e poder. Sua relação com Polinices transcende categorias tradicionais – é irmã, mas também substituta maternal e esposa simbólica¹⁰.
Martha Nussbaum vê em Antígona a “fragilidade do bem” – a vulnerabilidade humana diante de forças que não podemos controlar. A protagonista não é uma heroína invencível, mas uma mulher comum enfrentando um dilema impossível¹¹. Sua humanidade, não sua perfeição, é o que a torna inspiradora.
As interpretações feministas destacam como Antígona desafia o patriarcado não apenas politicamente, mas ontologicamente. Ela age no espaço público com autoridade moral que a sociedade grega reservava aos homens. É uma performance de gênero que continua radical 2.500 anos depois.
Relevância contemporânea: Antígona nos tribunais de hoje
A obra permanece surpreendentemente atual. Em tempos de “lawfare” e politização da justiça, o dilema de Antígona ressurge: quando devemos obedecer a leis tecnicamente válidas mas moralmente questionáveis? A pergunta não é acadêmica – é existencial para advogados, juízes e cidadãos.
Os debates contemporâneos sobre objeção de consciência – médicos que se recusam a realizar abortos, farmacêuticos que não vendem contraceptivos – ecoam o conflito central da tragédia. Até que ponto profissionais podem invocar princípios morais para descumprir obrigações legais?
Questões de bioética frequentemente recreiam o dilema sofocleano: famílias que desafiam protocolos médicos para cuidar de entes queridos, pacientes que reivindicam direito à morte digna contra leis que criminalizam a eutanásia. Antígona continua viva nessas batalhas.
No direito constitucional, a obra oferece insights sobre o controle de constitucionalidade. Quando tribunais invalidam leis democraticamente aprovadas com base em princípios constitucionais, estão, em essência, aplicando a lógica de Antígona: existem normas superiores que limitam o poder estatal.
Lições para a prática jurídica
Para advogados, Antígona oferece um modelo de advocacia principiada. Ela não tenta escapar das consequências de seus atos – aceita a responsabilidade por desafiar o poder. É uma lição sobre integridade profissional que transcende técnicas e estratégias.
Para juízes, a obra é um alerta sobre os perigos da inflexibilidade. Creonte tem poder para mudar sua decisão, mas o orgulho o impede. Quando finalmente reconhece o erro, é tarde demais. É uma parábola sobre humildade judicial e a importância de considerar não apenas a letra da lei, mas seu espírito.
Para estudantes de direito, Antígona é um lembrete de que o direito não é apenas técnica – é uma reflexão sobre valores fundamentais da sociedade. A obra desafia a ilusão de neutralidade jurídica, mostrando que todo sistema legal incorpora escolhas morais e políticas.
Conclusão: a perenidade do dilema
Antígona permanece relevante porque o conflito que ela representa é estrutural na condição humana. Vivemos simultaneamente como indivíduos morais e cidadãos de Estados. Essas duas dimensões nem sempre coincidem – e quando divergem, enfrentamos o dilema de Antígona.
A obra não oferece soluções fáceis – oferece algo mais valioso: clareza sobre a natureza do problema. O conflito entre consciência individual e ordem social não pode ser resolvido definitivamente, apenas navegado com sabedoria, humildade e coragem.
Como dizia Tirésias a Creonte: “O único crime é o orgulho”. Talvez seja essa a lição mais importante de Sófocles para o direito contemporâneo: a humildade de reconhecer que nossas leis e instituições, por mais elaboradas que sejam, são sempre aproximações imperfeitas da justiça.
Antígona morreu, mas sua pergunta permanece viva: quando devemos obedecer e quando devemos resistir? É uma pergunta que todo operador do direito deve fazer, não apenas uma vez na vida, mas todos os dias. E é por isso que, 2.500 anos depois, ainda lemos Sófocles – não apenas como literatura, mas como manual de sobrevivência ética em um mundo juridicamente complexo.
“Temos apenas um pouco de tempo para agradar aos vivos. Mas toda a eternidade para amar os mortos.” Antígona sabia que algumas batalhas transcendem a vitória ou a derrota. O direito, no seu melhor, também.
Questionário
Instruções: Responda com C (Certo) ou E (Errado) para cada afirmação abaixo.
Questões
1. Antígona representa exclusivamente o direito natural, enquanto Creonte simboliza apenas o direito positivo, configurando uma oposição maniqueísta entre bem e mal na tragédia de Sófocles.
2. Lawrence Kohlberg classificaria Antígona no estágio pós-convencional de desenvolvimento moral, pois ela se guia por princípios universais que transcendem convenções sociais.
3. Os Julgamentos de Nuremberg rejeitaram a defesa de “cumprimento de ordens legais” com base em lógica similar à defendida por Antígona, reconhecendo que certas leis podem ser moralmente aberrantes.
4. Segundo Carol Gilligan, Antígona exemplifica a “ética da justiça”, caracterizada por abordagem abstrata e impessoal focada em regras universais.
5. A frase “Não foi Zeus quem fez tal lei; essa não é a Justiça dos deuses” expressa o reconhecimento de Antígona da supremacia absoluta das leis estatais sobre qualquer princípio moral.
6. Hegel interpretou o conflito entre Antígona e Creonte como a essência da tragédia: duas “potências éticas” igualmente válidas se confrontando sem possibilidade de síntese harmônica.
7. A doutrina do direito natural de Gustav Radbruch foi aplicada pelos tribunais alemães para processar guardas fronteiriços do Muro de Berlim, argumentando que leis extremamente injustas não constituem verdadeiro direito.
8. Martha Nussbaum vê em Antígona a “fragilidade do bem”, retratando-a como uma heroína invencível que supera todas as adversidades através de sua força moral superior.
9. O direito internacional contemporâneo reconhece normas imperativas (jus cogens) que nenhum Estado pode derrogar, representando uma versão secular da “lei divina” defendida por Antígona.
10. Judith Butler oferece uma interpretação pós-estruturalista de Antígona como figura que desafia estruturas normativas de parentesco e poder, transcendendo categorias tradicionais de relacionamento familiar.
Gabarito Comentado
1. ERRADO Comentário: Embora Antígona e Creonte representem, respectivamente, direito natural e positivo, Sófocles não os retrata de forma maniqueísta. O texto deixa claro que “Sófocles não demoniza nenhum dos dois” – Creonte não é um tirano cartunesco, mas um governante que genuinamente acredita estar agindo pelo bem comum, enquanto Antígona não é uma romântica ingênua, mas age conscientemente. A tragédia reside exatamente no fato de ambos terem razões válidas, criando um conflito insolúvel.
2. CERTO Comentário: Conforme explicado no texto, Kohlberg classificaria Antígona no estágio pós-convencional porque ela se orienta por princípios universais que transcendem convenções sociais. Diferentemente de Creonte, que opera no estágio convencional (“lei e ordem”), Antígona baseia suas decisões em princípios morais que considera superiores às leis humanas.
3. CERTO Comentário: O texto confirma que os Julgamentos de Nuremberg basearam-se em lógica similar à de Antígona, rejeitando a defesa nazista de “cumprimento de ordens legais” porque reconheceram que certas leis são tão moralmente aberrantes que perdem legitimidade. Isso representa a aplicação prática do princípio defendido por Antígona de que existem leis superiores às normas estatais.
4. ERRADO Comentário: Segundo Gilligan, é exatamente o contrário: Antígona exemplifica a “ética do cuidado” – sua decisão nasce de responsabilidade relacional e do dever de cuidar do irmão. Creonte é quem representa a “ética da justiça” – abstrata, impessoal, focada em regras universais. A interpretação de Gilligan destaca como Antígona age com base em relacionamentos concretos, não em abstrações.
5. ERRADO Comentário: A frase expressa exatamente o oposto: o repúdio de Antígona às leis estatais quando estas conflitam com princípios superiores. Ao dizer que Zeus não fez tal lei e que ela não representa a Justiça dos deuses, Antígona está afirmando a existência de leis não escritas, universais e permanentes, que antecedem e superam qualquer decreto real.
6. CERTO Comentário: Esta é precisamente a interpretação hegeliana apresentada no texto. Hegel viu no conflito o paradigma da tragédia: duas forças éticas legítimas em confronto irreconciliável. Não há síntese possível porque ambas as posições têm validade moral, criando a catástrofe trágica onde não existe solução harmônica.
7. CERTO Comentário: O texto confirma que tribunais alemães aplicaram a doutrina de Radbruch ao processar guardas fronteiriços, argumentando que “leis extremamente injustas não são verdadeiro direito”. Esta aplicação demonstra como os princípios defendidos por Antígona encontraram expressão na jurisprudência contemporânea, validando a tese de que certas normas perdem legitimidade por sua extrema injustiça.
8. ERRADO Comentário: Martha Nussbaum vê em Antígona precisamente a “fragilidade do bem” – a vulnerabilidade humana diante de forças incontroláveis. Para Nussbaum, a protagonista não é uma heroína invencível, mas “uma mulher comum enfrentando um dilema impossível”. Sua humanidade e vulnerabilidade, não sua invencibilidade, é que a tornam inspiradora.
9. CERTO Comentário: O texto estabelece esta conexão explicitamente: as normas imperativas do direito internacional (jus cogens), que nenhum Estado pode derrogar, representam “a ‘lei divina’ de Antígona em versão secular”. A Declaração Universal dos Direitos Humanos exemplifica essa “vitória póstuma da jovem tebana”, mostrando como princípios universais podem limitar a soberania estatal.
10. CERTO Comentário: Judith Butler efetivamente oferece essa interpretação pós-estruturalista, vendo Antígona como figura “queer” que desafia estruturas normativas. O texto explica que, para Butler, a relação de Antígona com Polinices “transcende categorias tradicionais – é irmã, mas também substituta maternal e esposa simbólica”, representando uma performance de gênero que continua radical mesmo após 2.500 anos.
Notas:
¹ BURNS, Tony. Sophocles’ Antigone and the History of the Concept of Natural Law. Political Studies, v. 50, n. 3, 2002.
² SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003.
³ ARISTÓTELES. Retórica. Livro I, cap. 13, 1373b.
⁴ HEGEL, G.W.F. Estética. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.
⁵ KOHLBERG, Lawrence. The Psychology of Moral Development. São Francisco: Harper & Row, 1984.
⁶ GILLIGAN, Carol. In a Different Voice: Psychological Theory and Women’s Development. Cambridge: Harvard University Press, 1982.
⁷ JACKSON, Robert H. The Influence of the Nuremberg Trial on International Criminal Law. Disponível em: https://www.roberthjackson.org/speech-and-writing/the-influence-of-the-nuremberg-trial-on-international-criminal-law/. Acesso em: jul. 2025.
⁸ ALEXY, Robert. The Argument from Injustice: A Reply to Legal Positivism. Oxford: Oxford University Press, 2002.
⁹ KING JR., Martin Luther. Letter from Birmingham Jail. 1963.
¹⁰ BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: Kinship Between Life and Death. Nova York: Columbia University Press, 2000.
¹¹ NUSSBAUM, Martha. The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
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