Introdução – Uma Reviravolta na Carreira da Magistratura

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu uma decisão de grande impacto para a carreira da magistratura em todo o Brasil. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.757, a Corte analisou uma lei do Estado de Roraima (Lei Complementar nº 221/2014) que estabelecia uma regra específica para a movimentação de juízes: a remoção (mudança de vara ou comarca dentro da mesma entrância) deveria ocorrer antes da promoção por antiguidade (ascensão para uma entrância superior).
A Procuradoria-Geral da República (PGR) questionou essa regra, alegando que ela seria inconstitucional. Contudo, o STF, por maioria, decidiu que a lei de Roraima é constitucional. Mais do que isso, essa decisão levou ao cancelamento de um entendimento anterior da própria Corte, consolidado no Tema 964 da Repercussão Geral.
Essa mudança representa uma verdadeira reviravolta na forma como se interpretam as regras de promoção e remoção de juízes federais e estaduais, com potencial para alterar planejamentos de carreira em todo o Judiciário. Vamos entender o que aconteceu?
2. Como Era Antes? A Regra da LOMAN e o Tema 964
Para entender a magnitude da mudança, precisamos voltar um pouco no tempo. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – Lei Complementar nº 35/1979), em seu artigo 81, trazia uma regra clara: a remoção só tinha precedência garantida sobre o provimento inicial na carreira e sobre a promoção por merecimento. A lei era silenciosa quanto à promoção por antiguidade.
Essa omissão levou o STF a interpretar, historicamente, que nos casos de promoção por antiguidade, esta deveria ocorrer antes da remoção. Ou seja, quando uma vaga surgia e deveria ser preenchida pelo critério de antiguidade, primeiro abria-se a chance para juízes de entrâncias inferiores serem promovidos para ela. Só depois, se a vaga não fosse preenchida por promoção, é que os juízes já pertencentes àquela entrância poderiam concorrer via remoção.
Esse entendimento foi solidificado pelo STF no Tema 964 da Repercussão Geral, cuja tese afirmava textualmente: “A promoção na magistratura por antiguidade precede a mediante remoção“. Essa era a regra do jogo até a recente mudança de posicionamento da Corte.
3. A Virada de Chave: O Impacto da EC nº 45/2004 e a Nova Leitura da Constituição
Se antes o entendimento majoritário, consolidado inclusive pelo Tema 964/RG, era que a promoção por antiguidade tinha precedência sobre a remoção, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004 (a chamada “Reforma do Judiciário”), plantou a semente para uma nova interpretação que, agora, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal.
O ponto de inflexão reside em uma leitura mais atenta e contemporânea do Artigo 93 da Constituição Federal, que trata do Estatuto da Magistratura, à luz das inovações trazidas pela EC 45/2004.
Crucial para essa mudança foi a inclusão do inciso VIII-A ao Art. 93, que determina:
“VIII-A o acesso aos tribunais de segundo grau far-se-á por antiguidade e merecimento, alternadamente, atendidas as disposições dos incisos II e III e observada a classe, cabendo ao tribunal, antes de prover a vaga, chamar, pelo menos uma vez, para remoção, os juízes de igual entrância;”
Embora este inciso trate especificamente do acesso aos tribunais de segundo grau, sua lógica influenciou a interpretação da movimentação em toda a carreira.
Mais diretamente aplicável à movimentação entre entrâncias (que engloba a promoção e, por analogia, a remoção/permuta entre juízes de mesma entrância), está o caput do Art. 93, que agora, com a redação dada pela EC 45, remete à lei complementar (a LOMAN, no caso) para dispor sobre “a remoção, a disponibilidade e o acesso inicial à carreira, observados, no que couber, o disposto neste artigo e os preceitos constitucionais”.
No entanto, a interpretação decisiva do STF, firmada em julgamentos anteriores (como na ADI 6.609) e reafirmada na ADI 6.757, foi a de que a EC 45/2004 unificou a sistemática de movimentação da carreira (promoção e remoção). A partir da nova arquitetura constitucional, especialmente considerando o espírito da reforma de dar maior organicidade à carreira, entendeu-se que a remoção (movimentação horizontal, dentro da mesma entrância) e a permuta devem sempre ter precedência sobre a promoção (movimentação vertical, para uma entrância superior). Isso vale tanto para as vagas que seriam preenchidas por antiguidade quanto por merecimento.
A justificativa fundamental para essa nova interpretação reside em dois princípios:
- Valorização da antiguidade na entrância: Dar prioridade à remoção prestigia o magistrado que já alcançou determinada entrância e possui maior tempo de serviço naquela entrância. É uma forma de reconhecer a experiência e a dedicação naquele nível da carreira.
- Princípio da Isonomia: Garante que magistrados de uma mesma entrância tenham igualdade de oportunidades para ocupar as vagas que surgem dentro daquela entrância, antes que essas vagas sejam oferecidas a juízes de níveis inferiores através da promoção.
Em suma, a EC 45/2004 não mudou explicitamente a ordem no Art. 81 da LOMAN, mas alterou profundamente o contexto constitucional do Art. 93. O STF, ao interpretar essa nova realidade constitucional, concluiu que a precedência da remoção sobre a promoção (seja por antiguidade ou merecimento) é a sistemática que melhor se alinha com os princípios e a estrutura de carreira desenhada após a Reforma do Judiciário.
4. A Decisão Específica na ADI 6.757: A Lei de Roraima e a Confirmação da Nova Regra
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.757 foi o palco onde o Supremo Tribunal Federal consolidou e aplicou a nova interpretação sobre a precedência da remoção na carreira da magistratura. A ação foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra dispositivos de uma lei do Estado de Roraima (Lei Complementar Estadual nº 272/2020) que, justamente, estabeleciam que a remoção precedia a promoção por antiguidade na carreira do Ministério Público do estado (a decisão, embora sobre MP estadual, teve reflexos diretos na interpretação para a magistratura devido à identidade de princípios e da norma constitucional de referência, o Art. 93 da CF/88, aplicável por simetria).
O cerne da contestação na ADI 6.757 era se essa previsão da lei de Roraima, que dava prioridade à remoção sobre a promoção por antiguidade, era compatível com a Constituição Federal. A tese da PGR, baseada no entendimento anterior (pré-EC 45/2004 e alinhada ao Tema 964/RG), era a de que a promoção por antiguidade deveria ter precedência.
No entanto, seguindo a linha interpretativa que já vinha sendo amadurecida (especialmente após a análise do Art. 93 da CF/88 na ADI 6.609), o STF firmou o entendimento de que a lei de Roraima estava, na verdade, em conformidade com a Constituição Federal em sua redação pós-EC 45/2004.
A decisão na ADI 6.757, portanto, julgou improcedente o pedido formulado pela PGR. Isso significa que o Supremo considerou a lei de Roraima constitucional naquele ponto específico, pois ela refletia exatamente a nova ordem de precedência: a remoção vindo antes da promoção por antiguidade (e também por merecimento, dada a unificação da sistemática).
Mais do que apenas validar a lei estadual, o julgamento da ADI 6.757 serviu como o marco formal para a superação definitiva do Tema 964 da Repercussão Geral. O STF reconheceu explicitamente que o entendimento firmado naquele tema não mais se alinhava com a interpretação do Art. 93 da Constituição Federal após as alterações da Emenda Constitucional nº 45/2004. Assim, o Tema 964/RG foi formalmente cancelado.
Em síntese, a ADI 6.757 não apenas resolveu uma controvérsia pontual sobre uma lei estadual, mas consolidou a nova tese do STF sobre a precedência da remoção na carreira, alinhando o entendimento judicial à sistemática constitucional que o Supremo considera ter sido estabelecida pela EC 45/2004, e pôs fim ao entendimento anterior que prevalecia sob o Tema 964/RG.
5. Efeitos Modulados: A Transição Controlada para a Nova Regra

Decisões do Supremo Tribunal Federal que alteram entendimentos consolidados ou a interpretação de normas de longa data podem gerar instabilidade jurídica e afetar situações já estabelecidas com base na regra anterior. Para mitigar esses impactos e garantir uma transição segura, o STF frequentemente utiliza a técnica da modulação dos efeitos da decisão. Foi exatamente isso que ocorreu no julgamento da ADI 6.757.
Reconhecendo que a mudança da regra da precedência da remoção sobre a promoção por antiguidade representa uma alteração significativa na dinâmica da carreira para milhares de magistrados e na gestão de vagas pelos tribunais, o STF decidiu que a nova sistemática não seria aplicada imediatamente a todas as situações pendentes.
Assim, ficou estabelecido um prazo de transição: a nova regra de precedência da remoção passará a ser de observância obrigatória para todos os tribunais do país (federais e estaduais) somente após 12 meses, contados a partir da publicação da ata de julgamento da ADI 6.757.
Durante este período de 12 meses, cada tribunal poderá manter as regras que já vinha aplicando para o preenchimento de vagas por remoção e promoção (seja a regra antiga, dando precedência à promoção por antiguidade, ou, no caso de tribunais que já seguiam a nova lógica, mantê-la).
É importante destacar que concursos de remoção e promoção que já tenham sido finalizados (com a lista de aprovados e, idealmente, a nomeação/remoção já efetivada ou em vias de ocorrer) antes da publicação da ata de julgamento da ADI 6.757 são preservados. A modulação visa a proteger as expectativas legítimas geradas sob a égide da regra anterior para processos já concluídos.
O principal objetivo da modulação neste caso é triplo:
- Segurança Jurídica: Evitar a anulação em massa de atos e processos de movimentação (remoções e promoções) já realizados ou em andamento com base na regra antiga.
- Permitir a Adaptação: Conceder tempo suficiente para que os tribunais revisem e alterem seus regulamentos internos, editais e procedimentos de preenchimento de vagas, alinhando-os à nova interpretação constitucional.
- Minimizar Prejuízos: Reduzir o impacto negativo para magistrados que planejaram seus passos na carreira considerando a regra de precedência anterior.
Portanto, embora a decisão do STF tenha sido definitiva quanto à nova interpretação constitucional (remoção precede promoção, inclusive por antiguidade), sua aplicação prática generalizada em todos os tribunais do Brasil terá início após esse período de adaptação de 12 meses.
6. Impactos Práticos no Dia a Dia e as Discussões Geradas
A mudança de entendimento do STF sobre a precedência da remoção é mais do que uma alteração teórica; ela tem impactos muito concretos na forma como as vagas são preenchidas nos tribunais e, consequentemente, no planejamento de carreira dos magistrados.
O que muda na prática?
A principal e mais visível mudança é a prioridade dada aos juízes que já integram uma determinada entrância para se movimentarem dentro dela. Antes de uma vaga em uma comarca ou vara de uma entrância ser oferecida para um juiz de entrância inferior ser promovido (seja por antiguidade ou merecimento), a oportunidade deverá ser aberta, primeiramente, aos juízes que já pertencem àquela mesma entrância por meio de concurso de remoção.
Isso significa que um juiz mais antigo em uma entrância terá, via de regra, a chance de se mudar para uma vara mais interessante ou estratégica na mesma entrância antes que um colega de uma entrância inferior, mesmo que esteja elegível para promoção por antiguidade ou merecimento, possa “saltar” para aquela vaga por meio da promoção.
Essa sistemática busca valorizar o tempo de serviço e a experiência adquiridos dentro de cada nível da carreira, permitindo uma movimentação horizontal (dentro da mesma entrância) mais fluida e prioritária.
Discussões e Expectativas na Carreira
Como toda decisão que altera uma regra estabelecida há anos (mesmo que o STF considere que a base constitucional para a nova regra já existia desde 2004 com a EC 45), a mudança gerou debates e discussões no meio jurídico e, especialmente, entre os magistrados.
Muitos juízes planejaram suas carreiras com base no entendimento anterior, onde a promoção por antiguidade para uma vaga específica poderia ser uma rota mais rápida do que aguardar uma remoção para a mesma vaga na mesma entrância. A superação do Tema 964/RG e a consolidação da precedência da remoção inevitavelmente impactam esses planejamentos e expectativas.
Embora a modulação dos efeitos (com o prazo de 12 meses para implementação geral) tenha sido uma medida crucial para mitigar prejuízos e permitir a adaptação dos tribunais e dos próprios magistrados, ela não elimina completamente o fato de que a “regra do jogo” para o preenchimento de vagas mudou significativamente.
O debate gira em torno de como equilibrar a nova interpretação constitucional, que busca uniformizar e dar organicidade à carreira (priorizando a movimentação na mesma entrância), com as expectativas individuais criadas sob o sistema anterior. A decisão do STF, contudo, pende fortemente para a necessidade de alinhar as regras de movimentação àquilo que o Tribunal entende ser a vontade da Constituição Federal após a Emenda nº 45/2004.
Em resumo, os impactos práticos são a inversão clara na ordem de preenchimento de vagas (remoção antes da promoção), e as discussões refletem os desafios de adaptar planos de carreira a uma nova paisagem regulatória, mesmo com o período de transição concedido.
7. Conclusão: Um Novo Paradigma para a Movimentação na Magistratura
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6.757 representa, sem dúvida, um marco significativo na regulamentação da carreira da magistratura brasileira. Ao julgar improcedente a ação contra a lei de Roraima, o STF não apenas validou a norma estadual, mas consolidou uma nova interpretação do Artigo 93 da Constituição Federal, moldado pelas alterações da Emenda Constitucional nº 45/2004.
A principal mensagem é clara e estabelece um novo paradigma: a movimentação horizontal, por meio da remoção (e permuta), agora tem precedência sobre a movimentação vertical, a promoção (seja por antiguidade ou merecimento), no preenchimento de vagas na mesma entrância. Esse entendimento supera a interpretação anterior, que, baseada na LOMAN e consolidada no Tema 964/RG, priorizava a promoção por antiguidade em certos cenários.
O julgamento teve como efeito prático imediato o cancelamento formal do Tema 964/RG, encerrando a controvérsia que existia sobre a ordem de precedência. Além disso, reconhecendo a necessidade de adaptação em um sistema complexo e plural como o Judiciário brasileiro, o STF estabeleceu uma modulação de efeitos, concedendo um prazo de 12 meses para que todos os tribunais do país ajustem suas normas internas e práticas à nova sistemática.
Em uma perspectiva mais ampla, a decisão busca promover uma maior uniformidade nas regras de movimentação em nível nacional e reforçar a lógica da carreira dentro de cada entrância. Ao priorizar a remoção, o STF prestigia o tempo de serviço e a experiência do magistrado que já atingiu determinado nível da carreira, dando a ele a primeira oportunidade de ocupar uma vaga naquela entrância antes que ela seja oferecida a um juiz de entrância inferior por promoção.
Embora a mudança possa desafiar planejamentos de carreira construídos sob a égide da regra antiga, o entendimento majoritário do STF é que a nova sistemática está mais alinhada com a arquitetura constitucional da magistratura desenhada após a Reforma do Judiciário de 2004. Com a modulação concedida, espera-se que a transição ocorra de forma organizada, estabelecendo finalmente a precedência da remoção como a regra vigente para a movimentação de magistrados no Brasil.

A Confissão que vale e a associação que não existe: STJ redefine fronteiras no tráfico de…

André Mendonça e o safe harbor à brasileira: avanço hermenêutico ou retrocesso prático? O…

A prisão preventiva de parlamentares e os limites da imunidade formal: Uma análise do caso Carla…

Súmula 308 do STJ alienação fiduciária
Hey,
o que você achou deste conteúdo? Conte nos comentários.
[…] Jurisprudência […]