
“Há coisas que se dizem e coisas que se calam. Entre o silêncio e a palavra há todo um universo de consequências.” A frase, que poderia ser de Clarice Lispector, ecoa com precisão cirúrgica no recente julgamento do STJ que redesenha os contornos entre o dizer e o provar no direito penal das drogas.
No REsp 2.086.214/SP, julgado pela Sexta Turma em junho de 2025, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou duas questões que há tempos incomodam os operadores do direito: quando uma confissão informal vale como atenuante? E o que realmente configura uma associação criminosa no tráfico de drogas?
O peso das palavras não ditas em juízo
Carlos Alberto da Silva estava na encruzilhada clássica do processo penal brasileiro. Segundo os policiais, confessara informalmente sua participação no tráfico no momento da prisão. Em juízo, calou-se ou negou. O tribunal de origem não reconheceu a atenuante da confissão espontânea. O STJ, porém, desenhou uma fronteira mais sutil.
A Sexta Turma estabeleceu que a confissão informal — aquela sussurrada no calor da abordagem policial — só gera direito à atenuação quando o julgador a utiliza expressamente como fundamento da condenação. Não basta estar transcrita nos autos como mero eco do depoimento policial. É preciso que tenha peso, densidade, influência decisória.
A lógica é cristalina: se o juiz considera a confissão informal relevante o suficiente para condenar, deve também considerá-la relevante o suficiente para atenuar. Há aqui um princípio de coerência que transcende tecnicismos — quem se beneficia do aspecto incriminador não pode ignorar o aspecto atenuante da mesma declaração.
A quantidade que não faz a qualidade criminal
Mais provocativa ainda foi a decisão sobre associação para o tráfico. Os números impressionavam: mais de cinco quilos de maconha, quase três quilos de cocaína, dezenas de porções de crack. Uma pequena farmácia clandestina que, na lógica simplista, evidenciaria a organização criminosa.
O STJ, contudo, recusou-se a sucumbir à sedução dos números. Absolveu Carlos Alberto e seus comparsas do crime associativo, fixando tese que pode ecoar por anos: a quantidade de drogas, por mais expressiva que seja, não substitui a prova da estabilidade e permanência da associação criminosa.
É preciso mais que o flagrante eloquente. É preciso demonstrar o vínculo que transcende o momento da apreensão — a rede que se articula no tempo, a estrutura que se perpetua, a organização que sobrevive aos percalços policiais. Sem essa prova contextual, resta apenas concurso de agentes para um tráfico isolado.
A filosofia oculta da decisão
Por trás da técnica jurídica, esconde-se uma escolha filosófica fundamental sobre os limites do poder punitivo. Quando o STJ exige provas concretas de estabilidade associativa, está dizendo que o Estado não pode presumir a organização criminosa a partir de meros indícios quantitativos. A quantidade de drogas fala sobre a gravidade do ato, não sobre a natureza da associação.
Há aqui ecos da distinção que Giorgio Agamben faz entre potência e ato. A grande apreensão revela a potência lesiva do tráfico, mas não prova, por si só, o ato associativo permanente. Entre ter muito entorpecente e ser uma organização criminosa estável existe um abismo que só pode ser transposto por provas concretas — interceptações telefônicas, depoimentos que revelem hierarquia, evidências de divisão de tarefas ao longo do tempo.
O paradoxo da confissão informal
A solução encontrada pelo STJ para a confissão informal revela um paradoxo típico do processo penal contemporâneo. Reconhecer valor atenuante apenas quando a confissão embasa a condenação cria um incentivo perverso: quanto mais o julgador valoriza a palavra não confirmada do réu para condená-lo, mais deve valorizá-la para atenuá-lo.
É uma lógica de dupla face que expõe a tensão entre garantismo e pragmatismo judicial. O tribunal não ignora a realidade das confissões de momento — muitas vezes mais espontâneas que as formais —, mas estabelece um critério objetivo para sua valoração. Se serve para condenar, deve servir para atenuar.
As Fronteiras Redesenhadas
Esta decisão redefiniu duas fronteiras importantes no direito penal das drogas. A primeira, sobre associação criminosa, eleva o padrão probatório e protege os réus de condenações baseadas em presunções quantitativas. A segunda, sobre confissão informal, cria um mecanismo de compensação que impede o aproveitamento unilateral de declarações extraprocessuais.
Ambas as soluções revelam um STJ mais atento às sutilezas do processo penal, menos seduzido por automatismos punitivos. É um tribunal que prefere a prova contextual à presunção fácil, a coerência argumentativa à conveniência repressiva.
O Silêncio que Fala
Ao final, resta a pergunta que Kafka faria: o que é mais eloquente — o que se diz no calor da prisão ou o que se cala na solenidade do tribunal? O STJ respondeu com a sabedoria salomônica: depende do uso que se faz de cada silêncio e de cada palavra.
Carlos Alberto da Silva viu sua pena diminuída e sua associação criminosa desconstituída não por benevolência judicial, mas por uma aplicação rigorosa de princípios que protegem a todos nós. Porque, no fim das contas, as fronteiras que protegem o réu de hoje são as mesmas que protegerão o cidadão de amanhã.
A Justiça, neste caso, não foi apenas técnica. Foi, também, poética na medida certa — aquela que encontra a beleza na precisão e a precisão na beleza. Como diria Drummond: “Entre o ser e as coisas, que estranha distância há.” O STJ mediu essa distância com a régua da prova e encontrou, onde outros viam certeza, apenas possibilidade.
Henrique Araújo
Professor de Direito

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